o paradoxo da tolerância de Popper postado em 24/06/20


o paradoxo da tolerância de Popper

Caro leitor e leitora,

Foi Popper que me introduziu à epistemologia da Ciência quando, nos longínquos 2011, eu embarquei na viagem da inquietação. Foi uma pergunta, bem simples até, que a minha professora de Introdução à Ciência fez durante todo o curso e – ouso dizer – que ecoou por toda a nossa vida:  “Mas, o que é ciência?” Ora, o que é ciência. Embarcamos, portanto, nessa viagem sem fim. Durante a viagem esbarrei em Popper três vezes. Três grandes lições.

Sir Karl R. Popper (1902 – 1994) foi um dos primeiros epistemólogos que estudei e me afeiçoei. Eu olhei com olhos curiosos porque ele propôs uma teoria de que ciência era aquilo que era passível de falseamento e não de prova, como é comum de achar com os discursos de autoridade e até em embalagens de produtos com a máxima “comprovado cientificamente”. Mas, para Popper eu só posso chamar de ciência aquilo que eu posso falsear. Ele defendia que o indutivismo era falho porque só poderia teorizar o que vemos. E só precisaríamos ver um cisne preto (em seu clássico exemplo) para sabermos que existem cisnes pretos. Então seria um erro estabelecer uma verdade absoluta sobre a não existência de cisnes pretos só porque nunca os vimos. Se eu não posso testar e ser passível de refutação – como as estrelas influenciarem a personalidade das pessoas – não pode ser chamado de científico. Guardei meus mapas astrais e comecei a falsear as coisas por aí. Também foi a primeira vez que eu esbarrei na ideia de que as verdades jamais devem ser absolutas. A teoria de Popper é criticada por outros epistemólogos que tem outras teorias que são criticadas por outros epistemólogos. Esse não é o foco. 

A segunda vez que esbarrei em Popper foi, anos mais tarde, no mestrado. Quando fiquei encantada pela metáfora que Thomas Kuhn (sim, o das revoluções científicas) usou para descrever o embate crítico entre ele e Popper a respeito das teorias divergentes do que é ciência. Cada qual possuía um ponto de vista, como todos nós, e então Kuhn escreveu: “como poderei ensiná-lo [Popper] a usar meus óculos quando ele aprendeu a olhar através dos seus para tudo o que eu posso apontar?” Eu fiquei maravilhada e, pela primeira vez, tive consciência de que eu olhava o mundo através dos meus óculos. E que, para aprender a olhar com outros óculos, eu teria que despir os meus. Mas como despir se muitos nem sabemos que já carregamos tais óculos? Porque, não se engane, o mundo está cheio de óculos por aí. É tarefa ademais árdua tirá-los. Colocar outros, mesmo se apenas para ver qual lente é melhor, igual ao oftalmologista quando faz aqueles exames de rotina. 

Na terceira vez, já estava fora da vida acadêmica e não esperava ouvir teorias popperianas, principalmente no discurso político que virou cenário principal do cotidiano dos habitantes brasileiros em um mundo pós-moderno, globalizado onde tudo está a um clic de distância. Diante de tanto (des)argumento da extrema direita em nome da liberdade de expressão e tolerância e intolerância houve aquele tapa na mesa e conheci o paradoxo da tolerância. Conceito defendido por Popper em “The Open Society and Its Enemies” (1944), que – em simples linhas – defende que a tolerância não pode tolerar a intolerância, daí o paradoxo. Convido-te agora, caro leitor e leitora, a colocar os óculos de Popper para, ao entrar em seu contexto ao articular tal obra, entender suas críticas e um dos paradoxos mais sábios que já conheci. 

A obra foi redigida durante a Segunda Guerra Mundial e, portanto, traz o teor da crítica política que Popper faz devido ao seu próprio contexto de cidadão vienense. Viena, umas das cidades mais desenvolvidas intelectualmente no século XIX, foi devastada em consequências das duas grandes guerras mundiais. A pobreza trouxe caos político e o decaimento do dinamismo intelectual que ali era observado. Durante sua obra ele analisa e critica os inimigos da sociedade aberta a partir de conceitos de Platão, Hegel e Marx (sim, o da caverna, do socialismo e do comunismo) e nos apresenta a conceitos de raízes freudianas como “tensão da civilização” e consequências como “sociedade tribal”. Pontua sobre sociedade aberta e sociedade fechada e quem seriam os inimigos. No capítulo sete “Princípio de Liderança” Popper continua sua obra trazendo para o papel o Paradoxo da Liberdade, de Platão, e, em uma nota de rodapé, introduz um paradoxo menos conhecido: o da Tolerância. 

Em suas palavras: 

Menos conhecido é o paradoxo da tolerância: a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância. – Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimí-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim, que ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim podem proibir a seus adeptos, por exemplo, que dêem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos.

Quando damos a chance de intolerantes argumentarem estamos dizendo que está tudo bem com tais ideais e, só por serem intolerantes, o discurso que eles carregam pode ir na contramão e marginalizar discursos mais brandos que não são pertinentes sob seus óculos. Isso não quer dizer que temos no nosso discurso a própria intolerância, mas que nos respaldamos no direito de não aceitá-la de maneira alguma, em nenhuma hipótese, nenhuma circunstância.

E como o Popper bem disse, não importa quantas vezes você tenha visto um cisne branco, você só precisa de um cisne de outra cor para falsear a teoria que só existam cisnes brancos. O número de repetições de um evento no passado não importa na validação de uma teoria, mas o seu fracasso é necessário uma única vez. Assim, fica evidente que basta apenas um evento de idolatria ao nazismo, por exemplo, para falsear a teoria de que nazismo é um bom viés. Há de se descartar o próprio ideal político quando este não funcionar. A história está aí não para ser hipótese do que pode continuar acontecendo, mas como evidência do que já aconteceu e deu errado. O paradoxo da tolerância está aí, como um tapa em cima da mesa, ilustrando que quando ali senta um intolerante, eu me levanto. 

 

 

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Para saber mais leia as obras:

Kuhn, T. S. Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa?. En I, Lakatos; A, Musgrave (Ed.), A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix Universidade de São Paulo. 1979

Popper, K. R. (1974). A sociedade aberta e seus inimigos. Itatiaia: São Paulo. 1974

Serpa, L. G. M. A sociedade aberta e seus amigos: o conceito de sociedade aberta no pensamento político de Popper, Schumpeter, Hayek e Von Mises. 2007. 156 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

 


Jamili de Paula
Autor: Jamili de Paula

física e escritora de araque que, em universos paralelos, uni versos para lê-los. escrevo desesperadamente porque a cada palavra desenhada, marcada no papel, eu me conheço um pouco mais. nesse caos de poeira estelar que sou, as palavras são supernovas. berçário de letras. nelas me encontro. são meu lar porque sou elas. elas me formam e, principalmente, me denunciam. denunciam-me a mim. aqui jaz, sob estrelado céu, tais palavras; denúncias. meus pedaços.

 

 
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