Toca o despertador pula da cama arruma a cama escova os dentes troca de roupa pega os pertences corre para o serviço enquanto mastiga uma bolacha. Trabalha meio período para esquenta a marmita almoça lava a marmita vai no banheiro escova os dentes volta trabalha mais meio período o serviço está atrasado estica mais uma horinha para e volta para casa. Chega em casa arruma a cozinha prepara o jantar/almoço do dia seguinte monta as marmitas janta enquanto dá bronca no filho que não fez a lição de casa levanta coloca tudo na pia e corre para aquele projeto de qualificação ou renda extra para toma banho deita e morre algumas horinhas. De repente é domingo acorda um pouquinho mais tarde levanta faxina a casa atrasa para o almoço com os parentes chega pega a rapa da panela senta para ver a metade final da Temperatura Máxima sai no intervalo do jogo vai para a igreja volta para casa inventa uma sopa toma banho dorme mais cedo para começar tudo de novo.
Tudo sem virgulas pois não dá tempo!
Muito se discute sobre o momento atual, ou melhor, pessoas nos dizem coisas visto que discutir leva tempo, e tempo não nos pertence mais. Muito se fala em degeneração cultural, fuga dos costumes, falta de amor nos laços familiares. Para isso teorias malucas e dogmáticas (ordens mundiais, conspirações, lutas espirituais entre o bem e o mal) surgem a todo instante como respostas fáceis para evitar colocar o dedo na ferida.
A questão é que em algum momento nos perdemos! Onde isso aconteceu é o que me proponho a tentar responder, obviamente não estarei de todo certo, mas vale a reflexão.
O que aconteceu é que a sociedade que construímos, nos deu a possibilidade de ter tudo, menos tempo.
Nos últimos anos passei por um processo de desapego, vendi e doei uma porção de coisas que ficavam ali paradas. Ainda tenho muitas que pretendo me desfazer, que só não me desfiz por falta de tempo. O que desencadeou esse processo foram palavras sábias que ouvi de Pepe Mujica “Ex-Presidente do Uruguai”, uma incrível reflexão sobre o que é o dinheiro. Mujica nos diz que trocamos nosso tempo de vida por dinheiro para depois trocarmos por mercadorias, em outras palavras, trocamos nossas vidas por coisas, porem a única coisa que não podemos comprar é mais tempo de vida.
Isso me mudou, no entanto, ainda assim, não consegui vencer o desejo de adquirir outras tantas coisas que a cada passo que dou na vida tornam-se extremamente atrativas.
Tudo o que fiz foi pensar o porquê de tantas coisas, coisas essas que me tomavam o tempo de usá-las ao trabalhar para adquiri-las, em um constante fluxo de compra sem tempo de usufruir da posse, e pior, tornando-se cada vez menos atrativas após compra-las. Vivemos tempos de “Eros”, uma sociedade movida pelo desejo por aquilo que não temos, do amor a moda de Platão, de indivíduos egocêntricos.
Certamente ninguém aqui viu qualquer propaganda que lhe prometesse satisfação eterna, muito pelo contrário, toda a nossa criação é feita de promessas de glória futura, sempre na próxima etapa, da pré-escola para a escola, da escola para a faculdade, da faculdade para o trabalho e no trabalho para a promoção, da promoção para a aposentadoria da aposentadoria para o paraíso.
Esse sistema de mundo nos colocou para correr, correr atrás de metas para crescer, metas para nos manter onde estamos, até metas para um futuro póstumo. Nós corremos até não termos tempo para pensar para que corremos tanto.
Não pense que isso é por acaso, é exatamente isso que querem de nós, que fiquemos atolados até o pescoço no esforço contínuo de produção e consumo, sem tempo de refletir na vida e cansados de mais para reclamar, apenas dando lucro no excedente de nossos trabalhos e gastando o que nos sobra para comprar aquilo que nós mesmos produzimos.
É um sistema perverso, que nos dá a doença e nos vende o remédio. Para a ansiedade ansiolíticos, para as dores analgésicos e para as dúvidas respostas dogmáticas.
O momento atual, de pandemia, contribuiu muito para confirmar o que eu vinha pensando a tempos. Não me surpreende em nada saber que os casos de divórcio subiram nesse momento, afinal a fluidez das relações nessa sociedade do cansaço impossibilitaria que conheçamos qualquer coisa além do nosso Eros, muitos casais tiveram a primeira oportunidade de se conhecerem no isolamento, nada mais natural que muitos descobrissem que não amam o que viram.
E aqui entraremos no ponto crucial do desmanche das relações familiares, a reprodução social.
A cultura transformou-se em mercadoria desse sistema, como se fosse um produto na prateleira do mercado, o que antes seria feito pelos pais e avós hoje é feito por algum jovem youtuber qualquer, comumente reproduzindo a única cultura necessária para o sistema, a cultura do desejo pelo consumo. Hora fazendo unboxing “desembalando” os produtos X ou Y, hora fazendo slimes aquelas “gelecas coloridas”, que na minha opinião é o cumulo do consumismo, misturar um monte de materiais (cola, tinta, creme de barbear, bórax, lantejoulas e o que mais vir na mente) até virar algo homogêneo para jogar fora e começar tudo de novo, o capitalismo, com seus agentes, tomou nossa cultura de assalto e estamos rendidos.
O que mais define o que é uma família; não são os laços sanguíneos, mas sim o núcleo de relacionamento onde acontece a reprodução da cultura, momentos vividos juntos, discussões, interesses, tudo o que nos foi tomado. Nossos filhos são mais parentes dos “irmãos neto” do que de nós mesmos, e nós nos tornamos mais irmãos dos amigos do bar do que daqueles que nasceram ou cresceram nos nossos lares.
Pelo desenvolvimento individualista que tivemos, nos distanciamos a tal ponto dos familiares que nos tornamos completos estranhos uns aos outros. As reuniões familiares passaram a ser momentos de autocastração para nos adequarmos as expectativas dos anfitriões, um compromisso a ser cumprido, desprazeroso, enfadonho, algo a ser evitado. E o egocentrismo causado por essa nossa cultura do hedonismo radical “querer sempre o máximo de prazer” nos impossibilita de aceitarmos o outro como ele é, nos frustramos pelas expectativas não atendidas mais do que nos alegramos com as supridas, ou talvez o certo seria nem criar expectativas.
Por fim quero dizer que soluções não tenho muitas, na verdade, tenho é muitas dúvidas e a única certeza de que tem muita coisa errada, e que para situações extremas talvez as saídas também sejam extremas. A base da sociedade está errada, e enquanto não mudarmos drasticamente nossa forma de interação, fora desse estado de coisas, não temos um futuro brilhante.
Licenciado em Ciências Sociais, graduado em Ciência da Computação, e um apaixonado por assuntos sobre a existência humana, suas organizações políticas, suas relações de produção e seus comportamentos em grupo.
Meu objetivo é observar, interpretar e propor análises sob a ótica da Sociologia, Antropologia e Ciência Política, usando os meios tecnológicos como princípio de interação social contemporânea.