Nos longínquos dois mil e dezoito, em um congresso, na minha sala de apresentação de trabalho um colega colocou no seu último slide, como mantra, “apesar de você amanhã há de ser um outro dia”, do Chico. Achei emblemático, tanto quanto oportuno para os dias que se prenunciavam, sem nem sonhar, naquele ano, sobre coronavírus e geração antivacina. Era só um congresso sobre educação em ciências. Parece que falhamos. Por isso eu queria começar o meu texto sobre Chico e ser esperança de que amanhã há de ser um novo dia, outro dia e nos congressos de educação em ciências louvaríamos as nossas vitórias sobre o alfabetismo científico. E, assim, continuar a luta para além dos perversos.
Mas hoje queria pedir desculpa para Chico e também para Belchior e escrever que além de não ser outro dia, escrever que ano passado eu morri e aparentemente esse ano também. Morri também esse ano na falta de esperança de que as coisas vão mudar. Morri com mais uma mulher assassinada pelo (aquilo que se nomeia) parceiro. Morri no mês da visibilidade trans por ainda continuarmos o país que mais mata LGBT+. Morri com mais uma rua do racismo estrutural que se mostrou e eu mal consigo compreender e, ainda assim, continuar matando e oprimindo e marginalizando a raça preta.
O que eu posso fazer, além de escrever textos comunistas (como tão rotulam os perversos, que corromperam a palavra)? Além de oferecer colo e força para mulheres em situação de relacionamentos abusivos? Além de não rir de piadas homofóbicas? Além de questionar palavras racistas? Além de perder o sono imaginando como vou segurar as pontas para pagar 162 reais numa lata de leite condensado? Acho que esse ano eu morri também, igual ano passado, Belchior. Porque a cada corrupção, da palavra, da verdade, da transparência, da ciência, eu morri um pouco. No começo eu me mantive firme, dá para desfazer. Ainda dá para refazer. Dá para homenagear Chico Xavier, ainda. Dá para investir em pesquisa ensino e extensão de novo. Dá para recuperar a credibilidade da imprensa. Dá para continuar questionando “Quem mandou matar Marielle e por quê?” e quem sabe, até ter uma resposta. Dá para proibir as centenas de agrotóxicos inviáveis que hoje já estão na nossa mesa. Mas hoje parece que eles já estão nos matando, de dentro para fora. De fora para dentro nas balas perdidas que só encontram corpos nas favelas. Acho que esse ano eu morri de novo. E só começamos fevereiro. Emicida cantou que “Enquanto a Terra não for livre eu também não sou” e então eu acho que esse ano eu morri de novo. Morri com cada silencio conivente de quem nunca nem pensou em questionar quanta geleia de mocotó, não seria muito? Quanto agrotóxico, não seria muito? Cadê a vacina, não está demorando muito? Mas ouço só e essa porcentagem de eficácia, qual laboratório, é culpa do comunismo e o que petê fez? Poderia escrever sobre inúmeras coisas que continuaria me convencendo de que ainda pode ser reversível, mas hoje não. Hoje eu morri. Igual ano passado.
física e escritora de araque que, em universos paralelos, uni versos para lê-los. escrevo desesperadamente porque a cada palavra desenhada, marcada no papel, eu me conheço um pouco mais. nesse caos de poeira estelar que sou, as palavras são supernovas. berçário de letras. nelas me encontro. são meu lar porque sou elas. elas me formam e, principalmente, me denunciam. denunciam-me a mim. aqui jaz, sob estrelado céu, tais palavras; denúncias. meus pedaços.
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